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Estados e prefeituras fazem operação tapa-buraco na Previdência

06/11/2017 02:14

Revista Exame

A cidade mineira de Uberlândia, com 584 000 habitantes, é palco de um enredo que envolve perdas milionárias e possíveis irregularidades no sistema de aposentadoria de 16 000 servidores municipais. Em agosto, uma comissão da Câmara dos Vereadores enviou ao Ministério Público Estadual e à Polícia Federal seu relatório sobre fatos ocorridos desde 2013 no Instituto de Previdência Municipal de Uberlândia. Na época, o então prefeito Gilmar Machado (PT-MG) assinou um decreto para tornar o superintendente do instituto, nomeado por ele, membro-nato do comitê de investimentos, com o poder de indicar os demais participantes. Daí por diante, até 2016, o instituto redirecionou metade dos 340 milhões de reais que antes estavam em grandes bancos a 26 fundos de gestores independentes. As aplicações se deram dentro do que é permitido por lei, mas o relatório da Câmara alega que elas embutem taxas de administração muito altas e condições fora do padrão de mercado. Até agora, o instituto uberlandense perdeu 40 milhões de reais. “Tudo isso é representativo da má gestão do dinheiro público”, afirma o atual prefeito, Odelmo Leão (PP-MG). Gilmar Machado diz que o patrimônio do instituto cresceu quando ele esteve na prefeitura e que tudo se trata de disputa política. A antiga diretoria afirma que seguiu as regras do mercado e investiu em fundos autorizados por órgãos reguladores.

Assim como ocorre em Uberlândia, outras prefeituras e governos estaduais estão caçando irregularidades, mudando regras e buscando receitas extraordinárias para equilibrar os regimes de aposentadoria de seus servidores. A necessidade dessa operação tapa-buraco é evidente. Há um déficit de 90 bilhões de reais na Previdência dos estados, que chegará a 107 bilhões em 2019, segundo um cálculo do banco Itaú. Já os municípios apresentam superávit de 11 bilhões de reais, uma situação melhor porque eles ainda têm quatro funcionários ativos para cada aposentado, ante dois para um nos estados. Mas, quando consideradas as contas dos próximos 75 anos, ninguém está confortável: o rombo previsto é de 5,3 trilhões de reais para estados e municípios juntos.

Ou seja, a encrenca do Brasil com a Previdência vai muito além do grave problema das aposentadorias e pensões federais — motivo da acalorada discussão em torno da reforma pretendida pelo governo Temer. “Existe uma clara tendência de envelhecimento da população que fará a despesa crescer”, diz Marcelo Caetano, secretário da Previdência, do Ministério da Fazenda. “Mas uma particularidade dos governos locais é que eles já têm muitos servidores próximos da idade de aposentar.” A próxima década é preocupante: um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica que um terço dos 2,7 milhões de funcionários estaduais tem mais de 50 anos de idade e, portanto, pode parar de trabalhar em poucos anos.

Fechar o cerco a irregularidades tem sido um dos meios de tentar dar sustentabilidade ao sistema. Três grandes operações que envolvem sistemas de Previdência de funcionários públicos foram deflagradas pela Polícia Federal desde 2013. A última delas, em junho, atingiu Tocantins, estado cuja Previdência já perdeu 700 milhões de reais em aplicações e tem ainda 1 bilhão em fundos suspeitos. As operações desvendam o mesmo esquema: a sedução dos institutos de Previdência por consultorias e gestores para investir em fundos que acabam perdendo dinheiro, com a suspeita de pagamento de propinas aos intermediários. Um despacho a que EXAME teve acesso, da Operação Fundo Perdido, de 2016, relata que um gestor pegou o dinheiro de seis institutos do interior de São Paulo para investir 100 milhões de reais numa empresa do agronegócio de Mato Grosso, mas 15 milhões desse montante teriam sido retidos como propina. Para coibir esse tipo de fraude, o governo publicou em outubro uma resolução que exige experiência de dez anos e três casos de sucesso de investimento para gestores de fundos de maior risco que captem recursos com os institutos. Consultores e gestores criticam a norma: dizem que ela pune os bons gestores e dificulta o alcance das metas de retorno.

IRREGULARIDADES

As fraudes praticadas pelos próprios servidores também precisam ser atacadas. Segundo o Tribunal de Contas da União, no regime de trabalhadores privados, havia 46 000 benefícios sob forte suspeita em 2016, somando 433 milhões de reais. “Provavelmente há essa situação de irregularidades também nos estados e municípios, demandando a atenção dos tribunais locais”, diz o ministro do TCU Vital do Rêgo. Um dos estados mais enrolados, o Rio de Janeiro, está fazendo um pente-fino. Por lá, a Previdência tem um déficit de 12 bilhões de reais e há atraso de 650 milhões de reais nas aposentadorias e pensões de agosto e setembro, motivando protestos. Desde 2012, o estado economizou 1,5 bilhão de reais ao combater situações como a de 1 000 servidores aposentados por invalidez que continuavam a trabalhar e de 1 500 aposentados que acumulavam de dois a três benefícios.

A má gestão da Previdência penaliza todos os contribuintes. Mas os governos locais estão procurando novas receitas para enfrentar o aumento do custo que virá pela frente. Entre as fontes mais comuns estão a doação de imóveis oficiais ociosos e a transferência de royalties gerados por alguma atividade econômica.  As receitas das entidades com esses itens subiram de 53 bilhões de reais, em 2011, para 128 bilhões, no ano passado. Em Rondônia, a Previdência estadual tem um superávit de 1,8 bilhão de reais, mas já em 2022 estima-se que terá de contar com 470 milhões de reais do Tesouro para fechar a conta. Uma comissão foi montada pelo governo local para encontrar formas de redução desse impacto — num bom exemplo de planejamento. Uma alternativa é transferir para a Previdência um percentual maior dos royalties pagos pelas duas usinas hidrelétricas que operam no estado, Santo Antônio e Jirau, localizadas no Rio Madeira. Hoje, elas rendem 17 milhões de reais por ano à Previdência. “Estamos tirando dinheiro do Tesouro da mesma forma, mas pelo menos podemos aplicar esse recurso para obter uma rentabilidade maior”, diz Maria Rejane Vieira, presidente do instituto de Previdência de Rondônia.

Há outros exemplos de regimes que estão alcançando a sustentabilidade. Na Grande São Paulo, a cidade de Barueri criou em 2006 um instituto de Previdência que ficou cinco anos apenas recebendo aportes do governo municipal. Nesse tempo, os servidores continuaram no regime geral, junto com os trabalhadores do setor privado. Com isso, o instituto conseguiu acumular um patrimônio de 1,2 bilhão de reais para atender os 13 000 funcionários — se as contribuições patronais e dos servidores parassem de ser depositadas hoje, ainda haveria dinheiro para pagar as aposentadorias até 2045. Na catarinense Joinville, o regime criado no fim da década de 90, que atende 16 400 funcionários ativos e aposentados, tem recursos para pagar as aposentadorias dos próximos 100 anos e ainda sobram 6 milhões de reais. Por lá, o exemplo é de governança: desde 2003, dez anos antes da determinação da lei, o instituto já tinha um comitê de investimentos formado por servidores concursados e certificados que deliberam sobre onde aplicar os recursos. Além disso, um núcleo de gestão foi formado para fazer aplicações mais agilmente e, assim, evitar perdas. “Nos últimos cinco anos, obtivemos 1 bilhão de reais de ganhos com investimento”, diz Sergio Luiz Miers, presidente do instituto de Joinville.

A situação geral difícil tem origem em décadas e décadas em que os funcionários públicos contribuíram pouco para o sistema, com alíquotas de aproximadamente 5% do salário, mas contavam com regras camaradas ao se aposentar. Entre elas, o direito de parar com o último salário da carreira, que costuma ser mais alto, e com reajustes iguais aos concedidos a quem está na ativa. Essas regras são válidas para quem ingressou no serviço público até 2003. Fora isso, em média, metade dos servidores estaduais tem direito a aposentadoria especial, como policiais e professores, que podem parar de trabalhar aos 50 anos, no caso das mulheres. Um estudo do Ipea revela que o Brasil gasta 3,5% do PIB com aposentadorias do setor público, bem acima da média de 1,4% dos países mais ricos. Nos últimos 20 anos, os países mais desenvolvidos realizaram mudanças nas regras, com aumento da idade mínima para aposentadoria e elevação das contribuições ao sistema. “O Brasil está no grupo de cinco em 36 países analisados que ainda mantêm regras e regimes separados entre o setor público e o privado, mantendo privilégios para os servidores”, diz Rogério Costanzi, economista do Ipea responsável pelo estudo.

A reforma da Previdência que tramita no Congresso tenta de alguma forma reduzir essa diferença entre os regimes dos setores público e privado. Prevê para todos idade mínima de aposentadoria aos 65 anos, no caso dos homens, e 62 anos, para as mulheres. Além disso, estados e municípios seriam obrigados a criar um regime de previdência complementar para servidores que ganhem mais do que o teto de 5 500 reais do regime geral, algo opcional desde 2013, e que só foi feito por oito dos 26 estados e pelo Distrito Federal. O estado de São Paulo foi o primeiro, em 2011. Cerca de 20 000 servidores paulistas, com ganhos acima do teto, estão na previdência complementar, e a expectativa é chegar a 180 000 em 20 anos. Com essa estrutura, a previsão é que o déficit da Previdência paulista, que deve subir de 18 bilhões de reais para 49 bilhões até 2047, caia para 24 bilhões em 2087. Levou tempo para a Previdência acumular problemas e, ao que tudo indica, a operação tapa-buraco deve levar alguns anos para surtir efeitos. Mas ela é um caminho para garantir as aposentadorias dos servidores e não criar uma conta insuportável para o conjunto dos contribuintes.

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